Telas de celulares caros quebram facilmente. Relações edificadas em afeto, não



Resultado de imagem para pai e filho andar a cavalo



Larissa Bittar

Há seis meses, em uma manhã gelada, conheci Moisés e Corazón de Piedra. Uma dupla formada por um rapaz e seu cavalo que ficou marcada em minha memória. Corazón de Piedra era o cavalo (forte e imponente). Moisés, um homem gentil que a todo momento perguntava como eu me sentia, não combinaria com esse apelido. Ambos me conduziram por montanhas peruanas em uma trilha inóspita que me tirou o fôlego por conta da altitude e do frio. O trajeto, apesar de penoso, tinha algo de mágico. Era um daqueles lugares nos quais os que creem sentem Deus mais perto e os que não creem sentem ao menos a vida pulsar diferente.

Durante boa parte do percurso segui calada. Estava ofegante e meio anestesiada pelo cenário enfeitado com morros coloridos. O lugar parecia deserto. Ao avançar no caminho, porém, me deparei com algumas casas simples e crianças com gorros de lã, mulheres com saias compridas e senhores com sorrisos no rosto. Imediatamente me questionei como era possível viverem ali, distantes de tudo, privados do elementar. Mas uma alegria espontânea parecia dominar o coração daquelas pessoas… e inquietar o meu.

A certa altura, com o corpo ainda sob os efeitos do ar rarefeito, minha curiosidade falou mais alto que o silêncio imposto pelo mal-estar físico. Em um espanhol improvisado perguntei a Moisés se ele era feliz. Ele parou o cavalo e disse, surpreso: “Existiria algum motivo para não ser?” Aleguei, atrevida, do alto da minha arrogância: “Talvez a ausência de coisas básicas”. Eu era, naquele momento, a típica turista que se encanta com a beleza do lugar visitado, mas insiste em enxergar o modo de vida local, livre de TVs de LED e comida instantânea, como excêntrico e inviável. Moisés respondeu em tom sereno e sincero. “Eu tenho tudo.”

Não era uma das respostas-clichê com as quais estamos acostumados em noites de Natal ou entrevistas de emprego. Não era a frase feita que tenta dourar uma vida gasta. Era ele, em sua verdade, sendo simples e reto nas palavras e na forma de ver o mundo. Descreveu que era feliz porque o filho estava na escola, onde aprendia o que importa: “matemática, cuidados com o meio ambiente e história de seu povo”. Relatou que raramente adoecia porque produzia a própria comida, que não se sentia sozinho pois tinha família e amigos na comunidade, com cerca de 80 pessoas, e se divertia nas festas regionais. Como se informa? “Pelo rádio.” Qual energia? “A solar.” Falta algo? Ele se limitou a apontar a paisagem à nossa volta… impecável, deslumbrante.

A mim falta muito. A boa parte das pessoas com quem convivo também. Na sociedade em que vivo falta o iPhone mais moderno, que vai quebrar a tela no primeiro tropeço e arruinar o dia de alguém. Daqui a um ano faltará a nova versão. Não que seja pecado querer. E não que haja um jeito certo de viver ou que ali onde estão Moisés e Corazón de Piedra a vida seja sempre boa. Mas me parece que o “sou feliz” dele tinha algo de mais franco e duradouro que o meu e o da maioria dos que conheço. Parecia mais lúcido o apreço pela natureza e o respeito às relações humanas que a idolatria pelo consumismo de euforia imediata e volátil. Parecia mais provável encontrar satisfação genuína quando não existe a angústia de precisar ter um milhão de coisas para preencher sabe-se lá o quê.

Sei que o afeto que vi em Moisés ao falar do filho também existe em famílias instaladas em metrópoles. Sei que as mais variadas formas de felicidade se manifestam pelos quatro cantos do planeta, sem muitas regras, e que não dá para apontar a maneira certa de construir uma trajetória. Mas percebi que pelas bandas de cá, subestimamos o essencial na ilusão de que o supérfluo suprirá os vazios. Negligenciamos tempo para conseguir status. Perdemos a noção.

A gente tem o direito de ter quatro tênis da Nike e ir a baladas nas quais é normal jogar champanhe caro para cima. Mas não foi no shopping nem nessas festas que encontrei o verdadeiro sentido de paz de espírito. Foi no meio do nada e, ao mesmo tempo de tudo, em uma comunidade com cavalos e lhamas, energia renovável, famílias em trajes artesanais e homens com orgulho e gratidão pelo que possuem e por serem quem são.


Postado em Revista Bula







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