Minha alma por um tapete



Que dia é hoje? Ah... Terça. Bobagem, minha... Não faz a menor diferença. Nem sei por que pergunto. Costume, talvez. Necessidade de conexão com o mundo, com o tempo.
Que tolo, eu sou. Tão raro ter alguém disposto a me ouvir e eu perdendo tempo com perguntas inúteis sobre o tempo. Mas é que é tão difícil receber visitas que quero falar sobre tudo. Inclusive sobre o tempo que se arrasta, lodoso e triste aqui neste lugar que divido com tantos outros, igualmente largados. 
Todos degredados, solitários, carentes de um afago, uma palavra amiga, um sorriso que seja. Temos os cuidadores, claro. Eles se esforçam para nos atender em nossas necessidades mais básicas. Mas não são suficientes para alimentar nossas almas com o carinho e a atenção que precisamos.
Sabe, filho? Hoje em dia, ninguém se interessa pelos velhos. Ainda mais um velho meio cego, fracos das pernas, que se não usar fraldas vai fazer sujeira no tapete.
É, eu sei... Não teve muita graça. Desculpa. Meu senso de humor anda pior que a minha artrose, desde que fui abandonado aqui, por aqueles que eu pensava que me amavam. Minha família...
Bonita palavra, não é? “Família”. Mas a gente só dá valor quando perde, sabe? Eu pensava que família era pra sempre, pensava que nunca aconteceria de não terem mais tempo para mim, pensava que jamais achariam que eu dou trabalho demais, que o melhor seria me descartarem. Mas, foi justamente o que aconteceu.
Oh! Não! Não os culpe... Apesar de tudo, eu ainda os amo. E, acredite, eles foram uns grandes ingratos, sim, todos eles. Mas eu também tive culpa e não há um só dia que eu não pense nisso. Acho mesmo que você vai duvidar do que vou dizer agora: o que me trouxe até aqui foi justamente essa questão, da sujeira no tapete. Verdade! Eu juro!
Ah! Pare de rir. É muito triste isso e... Ah, não! Você entendeu errado. Não fui eu quem fez sujeira no tapete. Foi o Bruce.
Eu... Eu ainda não havia lhe falado sobre ele?? Puxa! Que cabeça a minha! O Bruce era um anjo. É! Eu sabia que você não ia acreditar... Mas é verdade.
O Bruce foi um anjo colocado no meu caminho para me ensinar o que é o amor e eu, muito ocupado em ganhar dinheiro, nunca lhe dei importância. 
Quando ele chegou, ainda filhote, eu aturava suas brincadeiras irritantes com expresso mau humor. 
Quantas vezes, pensei em despachá-lo, doá-lo a alguém que o levasse para bem longe? Só não o fiz porque meus filhos e a esposa gostavam muito dele.
Quando ele ficou adulto, nossa convivência tornou-se um pouco mais tranquila. Isto é, tirando a adoração que ele tinha por mim. Eu o enxotava, fechava-o no quintal, prendia-o no canil, mas ele não podia me ver que saltava nas minhas pernas, deitava de barriga para cima. 
Ah! Você também é desses que gosta disso? Eu não! Odiava! Vê lá se eu tinha tempo para dar atenção a um cachorro babão?
Mas, a gota d’água foi mesmo como eu disse, um tapete. Bruce foi ficando velho, meio cego, fraco das pernas e começou a fazer sujeira nos tapetes. Enquanto ele sujava apenas os tapetes do corredor, fui aguentando, em respeito à família. Mas, quando ele resolveu sujar o caríssimo tapete persa que eu tinha na sala, ah, meu amigo! O sangue me subiu. 
No mesmo dia, liguei para um veterinário, botei o cachorro numa caixa e toquei para lá. A eutanásia me custaria R$ 220,00 reais. Muito menos do que o pedaço do tapete que ele sujou, eu calculei.
Claro que o tapete não estava perdido! Nem precisou ir à lavanderia... Um pouco de desinfetante e estava como novo, mas... 
Você faz ideia de como é a cabeça de um sujeito que está conduzindo seu companheiro de mais de treze anos de convivência à morte e só consegue pensar no valor que irá gastar? Pois é... Eu era assim.
Chegando lá, uma senhora interessou-se pelo Bruce. Começou a puxar assunto e, quando soube que eu iria sacrificá-lo, pediu-me para ficar com ele. Deixei, na mesma hora. Nem mesmo um sujeito frio como eu era iria preferir tirar a vida de alguém a deixá-lo continuar vivo. Desde que bem longe de mim e dos meus tapetes, claro. 
Ainda dei a ela o valor que gastaria na eutanásia, para ajudar a sustentá-lo por uns dias. Depois, ela que se virasse. Afinal, a decisão foi dela, não foi?
Não, não! Minha família não me jogou neste asilo de castigo por isso. Claro que não. 
Quando eu digo que eu vim parar aqui por causa do Bruce e do tapete, é porque quando eles perceberam a falta do cachorro logo entenderam o que eu havia feito. 
E, acredite, ninguém perguntou nada, ninguém me criticou. Eles entenderam muito bem o meu recado. E eu fiquei tão aliviado em não ser cobrado por isso, que nem me dei conta da mensagem que passei: velhos são descartáveis. 
Bruce nos serviu muito bem enquanto jovem e cheio de energia, mas, quando começou a dar mais trabalho do que alegrias, era hora de nos livrarmos dele.
Pois é, meu amigo... A lição foi bem aprendida e então, como acontece com todos, eu também fiquei velho.
Não, não são lágrimas... eu tenho essa irritação nos olhos, coisa da idade, sabe?
Oh! Está bem! A quem eu quero enganar? São lágrimas, sim! 
Choro todo dia quando lembro do Bruce, do meu egoísmo, da minha burrice em não perceber que os filhos seguem os nossos exemplos e é muito mais com eles do que com as nossas palavras que eles aprend...
Ei! Veja! São eles! Ajude-me aqui, filho! Ajude-me a levantar, por favor! Me dê o andador, aquele ali! 
Isso, isso!
Sim!! São eles! Os voluntários da pet terapia! Venha! Venha! Vamos lá para fora!
Ah! Você não conhece? Eles trazem cães ao asilo para interagirem conosco.
Como não entende minha empolgação?? Depois de tudo o que lhe contei?
Ah, meu amigo, não se ofenda. Bom demais ter seu ouvido atento por alguns instantes.
Mas, hoje, disparado, a coisa que me dá mais prazer nesta vida, é acariciar o pelo macio de um cão.

Nena Medeiros

Postado no blog Vou-de-Blog


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